«Braço de ferro»

Já no tempo de Adão, a culpa morria solteira. Não foi ele – foi a mulher; não foi a mulher – foi a cobra. É verdade que a cobra não se desculpou, mas certamente por não pertencer ao recém-criado «género humano»: só a este foi concedido o dom de não se perceber a si próprio, de se perturbar com os seus desejos e o caminho que leva, de não se querer aceitar como responsável, de recalcar pensamentos e sentimentos, de mentir…

Eva e Adão não resistiram a comer do fruto da «árvore da ciência do bem e do mal». Mas havia muito boas razões para o comerem: o fruto não só era altamente nutritivo («bom para comer») como também tinha o valor da beleza e de tornar a inteligência ainda mais luminosa. Escolheram racionalmente, mas, como humanos que eram, não terão considerado devidamente todos os factores condicionantes da escolha. Saíram-se mal no «braço de ferro» com a tentação. (O significado primeiro de «tentação» é «ser posto à prova» – e daí «tentar» (esforçar-se), donde deriva «tentativa»).

O evangelho fala de um vencedor neste «braço de ferro». No deserto, Jesus enfrenta o desejo humano pelas honras, pela glória, pelo poder, pela «dolce vita». Podia  escolher não anunciar o reino de Deus para se anunciar a si próprio, fazendo gala dos seus dons pessoais. Mas escolheu dedicar a vida a proclamar a mensagem de Deus, a Verdade, até à morte.

O autor do Livro do Génesis procurou, com a linguagem da época, explicar coisas tão estranhas como a existência do mal, a tendência para escolhas más, e ao mesmo tempo a tendência para superar cada vez mais a “simples natureza” por meio de uma nova natureza: a cultura humana, com toda a sua ambiguidade. Adão e Eva agiram livremente, porque Deus os criou como seres livres e só eles responsáveis pelas escolhas que fizessem.

S. Paulo compõe todo um quadro com as personagens de Adão e Jesus. Estrategicamente, era de toda a conveniência estabelecer «a continuidade na ruptura» entre o judaísmo fortemente enraizado e o nascente cristianismo. (NB.: Esta e outras passagens de cartas suas dizem muito pouco aos nossos dias, de tal modo assentam na longínqua casuística entre judeus e cristãos – a sua leitura só seria útil num grupo de reflexão e discussão).

A fraqueza humana é “explicada” pelo mito de Adão e Eva, vítimas de um “erro de cálculo”. Com Jesus Cristo, tem início a «segunda criação» da Humanidade. Se a imperfeição humana trouxe e traz tantas consequências nefastas, qual não será a força da perfeição divina manifesta em Jesus? E ficámos a saber «uns truques» no «braço de ferro» com as forças do mal…

Manuel Alte da Veiga

m.alteveiga@netcabo.pt

(Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico)