«Afasta-te de mim!»

A árvore de Zaqueu*

* «Porque era de baixa estatura, subiu a uma árvore para ver Jesus» (Lucas 19,3-4)

Se treparmos até ao cimo, todas as coisas da vida servem para ver melhor.

V DOMINGO TEMPO COMUM – C

«Afasta-te de mim!» Diz-se em voz alta, mas sobretudo para dentro: quando nos calha um intruso, um passante inoportuno, um “amigo” rémora, um namorado que não encaixa, o cônjuge que já não queremos ao lado… Até desejaríamos poder dizê-lo às ideias obsessivas aos ideais incómodos e à nossa consciência. Dizemo-lo tanto por orgulho como por falsa humildade: tanto nos achamos senhores supremos das nossas escolhas sem termos que dar atenção aos outros, como nos achamos incapazes de realizar o que desejamos e de colaborar num plano comunitário. Por outro lado, verdade seja dita que, de vez em quando, precisamos de nos afastar na tranquilidade do nosso cantinho.

A Isaías também lhe calhou uma presença estranha, pertinazmente importuna e ainda por cima como que “mascarada”: a do Senhor Deus no seu esplendor, que os olhos humanos nunca podem ver claramente. Apenas os «seres ardentes» (significado do termo hebraico «serafim») a conseguem cantar, chamando-Lhe três vezes (ou seja, perfeitissimamente) «Santo» – uma fórmula de culto já anterior a Isaías e não exclusiva do judaísmo.

Havia razão para ter medo: acreditava-se que a visão da transcendência divina era de tal modo tremenda que podia aniquilar o ser humano. Por isso, esse profeta precisou de muita coragem (ou terá tido o atrevimento) para aceitar o desafio que lhe fora lançado pelo próprio Deus – mas sobretudo porque teve a experiência de que o encontro com Deus também podia purificar os humildes, pondo a força divina no seu coração. Partiu então a pregar a «santidade de Deus», «o Santo de Israel».

A «santidade» é a característica daquilo que é divino, essencialmente e infinitamente diferente das características humanas. Esta realidade tão estranha enche de medo os «mortais», que se sentem vulneráveis à acção benéfica ou maléfica de um ser superior. «Santo» e «sagrado» (em inglês «holy») derivam do mesmo radical indo-europeu («sak» e «sank»), já com o sentido de consagrar, dedicar, apontando para algo aparte e inviolável (o radical de «holy» tem o sentido de completo, em perfeito estado, como se vê em «whole» e «health»).

O «Santo de Israel» é inacessível, abso-luto (totalmente separado, e portanto isento de toda a relatividade humana). Mas é também amor, prazer, força, salvação e apoio absolutos (portanto não sujeitos à relatividade e instabilidade humanas), «rochedo inabalável», «palavra criadora», «benevolência e fidelidade eternas». Ao longo da Bíblia, e particularmente nos Salmos (como o da liturgia de hoje), encontram-se frequentemente estes conceitos. De toda a maneira, é normal que se tenham desenvolvido rituais de aproximação de Deus, normalmente rituais de purificação (que normalmente incluem injunções morais).

Na 2.ª leitura (onde encontramos a forma provavelmente mais antiga do credo cristão), S. Paulo já elimina as barreiras entre os seres humanos e Deus: o seu «poder absoluto» eleva-os à dignidade divina – o que sempre pareceu inverosímil para a inteligência humana (Actos dos Apóstolos, 17, 16-34). Ele próprio se confessa «indigno de ser chamado apóstolo», «um aborto», não só por ter perseguido os cristãos, mas pelas suas muitas fraquezas. Não fora o clima frenético à volta do tema do aborto, não daríamos tanta atenção ao termo. Mas S. Paulo apenas confessa humildemente que, perante a perfeição de Deus, não passa de um ser mal formado, jamais amadurecido, mas que mesmo assim a Vida divina se serve dele para comunicar mais vida. Por isso, Deus o purificou – e com que violência… – a caminho de Damasco.

E agora, é a vez de S. Pedro (evange-lho):

«À tua voz, Senhor, lançarei as redes», exclama. Pedro admirava imenso Jesus, mas não estava nada à espera de ter um amigo assim tão “estranho”! E ao dar conta de que «o Santo de Israel», com todo o seu poder, se manifestava em Jesus, caiu de joelhos e gritou: «Afasta-te de mim!»

Porém, os tempos eram outros e Jesus deu-lhe a volta: à humildade de Pedro seguiu-se a “promoção” a «pescador de homens» (uma imagem linda e profunda, mas profanada pelos que se arrogaram o direito de “pescar à força”, utilizando o seu falso poder espiritual para obrigar os outros, até com ameaças cruéis, a “entrarem na rede”, submetendo-se a um código falsamente apelidado de «fé». No melhor pano cai a nódoa!).

Parecia provado que não são os muitos defeitos e decisões erradas que nos afastam de Deus – mas sim o teimar no erro, por caturrice ou preguiça.

(Verdade verdadinha, não faltam razões para dizer a Deus: «Afasta-te de mim!» Mas será sobretudo devido ao conflito interior entre as exigências da justiça e o comodismo; e sempre que não juntamos a inteligência e o coração para ordenar o projecto da vida, conscientes do nosso temperamento, incapacidades e capacidades, desejos “bons” e “maus”… Valha o realismo de S. Paulo: «pela graça de Deus sou o que sou…» e tornou-se «pescador de homens» com todas as qualidades e defeitos que tinha, achando até que podia dizer que trabalhava mais do que os outros apóstolos…)

Pedro era mesmo um amigo fixe, mas demasiado auto-confiante e impulsivo: quando se viu em perigo de ser preso com Jesus, apressou-se a negar, e por três vezes, ser seu amigo. O evangelho de João (21,15-19) termina com um interessante diálogo, já depois da ressurreição: Jesus perguntou a Pedro, e por três vezes, se era deveras seu amigo. É claro que Pedro acusou o toque… Fica triste e receoso de si próprio, até porque já experimentou que mesmo o maior amor humano é imperfeito. Mas é então que é convidado a trabalhar no projecto de Cristo, e curiosamente já não responde: «Afasta-te de mim!»

Manuel Alte da Veiga