Evangelhos devolvidos ao povo

Livro O acesso fácil à leitura dos Evangelhos e à Bíblia é algo de muito recente. Tão recente que nos pode espantar que tenha sido possível viver tantos séculos sem proximidade à “feliz notícia”. Na verdade, a proximidade à Palavra da Vida era feita de outras formas que não a leitura individual. Era feita de audição dos pregadores e de visão das esculturas e imagens das igrejas. As catedrais, como é vulgar dizer, eram “Bíblias esculpidas”, tal era a profusão de figuras e cenas bíblias que explicavam em pedra o que estava escrito em letras inacessíveis para a maioria do povo. E, além das esculturas havia as pinturas, os frescos, os vitrais.

Entre católicos, só a partir do século XX foi possível que o simples cristão pudesse ler a Bíblia no recanto da sua casa sem sobre ele pairar a suspeita de “protestante”. Compreende-se. A história estava ensanguentada pelas divisões que o princípio da livre interpretação das Escrituras provocou entre cristãos. Mas o reverso da não permissão (ou pelo menos do não aconselhamento) de leitura da Bíblia por parte do catolicismo teve outras consequências negativas, que até nem são propriamente espirituais. A leitura popular da Bíblia, nos países protestantes, fez com que o analfabetismo desaparecesse mais rapidamente do que nos países tradicional e maioritariamente católicos. E quem diz analfabetismo, diz subdesenvolvimento.

Porém, a Bíblia e os Evangelhos nasceram entre o povo. Antes de passarem a escrito, sabe-se hoje, os Evangelhos eram relatos orais. Estavam na memória e no coração dos primeiros cristãos antes de estar nas folhas de papiro ou nos pergaminhos. E entre os primeiros cristãos (muitos deles igualmente judeus), saber ler era um requisito fundamental para participar nas assembleias litúrgicas onde se lia a Tora (Pentateuco), os Profetas, os Salmos (saber escrever já era mais raro; aliás, para isso havia os escribas – saber escrever era profissão).

“Os Evangelhos 2006 comentados”, depois de “Os Evangelhos de 2005 comentados”, têm algo de inaugural porque é um reapropriamento popular dos Evangelhos. A interpretação saiu das igrejas e entrou no quarto. Na sala de aulas, na empresa, na sinagoga, no consultório do médico… Há nesta obra comentários de pessoas ilustres como o cardeal-patriarca D. José Policarpo ou a escritora Agustina Bessa-Luís; mas a maior parte dos comentadores é desconhecida do grande público. E tanto podem ser católicos como budistas ou muçulmanos, de Portugal ou de Timor, homens e mulheres, religiosos ou ateus… o que leva o bispo emérito brasileiro D. Pedro Casaldáliga a escrever no posfácio: “A ideia é original. Comentários de especialistas (em Bíblia, em Liturgia, em Pastoral) aos Evangelhos de cada domingo há muitos, sempre mais; em livros, revistas, em folhetos, na rádio, na TV, e, logicamente, nas celebrações semanais das comunidades. Mas o tipo de comentários que este livro abriga é singular, mesmo ousado. Cientistas e universitários, personalidades de vários segmentos das religiões mundiais, invadem um terreno vedado. Alguns puritanos poderiam até rasgar-se as vestes com presumível razão…”

Este livro foi apresentado na quinta-feira, 9 de Março, na Universidade de Aveiro, por elementos da editora Firmamento e pelo Pe Alexandre Cruz, do CUFC, numa iniciativa acolhida pela associação Civitas.

“Disseram os judeus: «Foram precisos quarenta e seis anos para se construir este templo, e Tu vais levantá-lo em três dias?» Jesus, porém, falava do templo do seu corpo” (Evangelho de João 2,20s).

«Imergindo nas águas abismais da morte onde afogamos Adão, estamos sempre num contínuo debate por chegar finalmente à superfície, com a aflição urgente de poder respirar. A vida inteira é essa emersão contínua para respirar. Três dias para emergirmos a nós. Um corpo, um caminho, uma verdade, uma vida: um só amor».

(Excerto do comentário de António de Castro Caeiro, professor de filosofia, sobre o Evangelho de 19 de Março de 2006)

Os Evangelhos 2006 Comentados

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Edições Firmamento

264 páginas