A cultura não se entende sem a fé

Último dos encontros sobre a Gaudium et Spes dedicou-se à cultura

A relação entre a Igreja e o progresso cultural e científico, partindo de um capítulo da Gaudium et Spes (GS), foi o assunto abordado por dois professores de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra, Delfim Leão e José Luís Brandão, em Aveiro, a 8 de Junho.

Apesar de redigido há 40 anos, a GS surge aos olhos dos oradores como um texto actual, não só por apontar situações como a globalização, mas também pela prudência com que reflecte sobre a efemeridade do saber e a necessidade de consciência crítica perante o mesmo.

Recuando à sua infância, Delfim Leão relembrou as figuras da autoridade e do conhecimento: destacava-se o padre, para além do polícia, da professora da instrução primária e do médico. Hoje, a realidade é outra, a exigência da sociedade é maior. E o desafio da formação contínua coloca-se aos padres, como a todos.

A análise da produção artística desde tempos remotos permite concluir, sem qualquer dúvida, que existe um diálogo profícuo entre Fé e Cultura. A arte ocidental (estatuária, obras literárias, música, pintura, entre outras) repousa no imaginário judaico-cristão, mesmo a que ataca a hierarquia da Igreja (já evidente em ficção do século XIX) ou a essência dos valores religiosos e as suas figuras mais importantes (ficção do século XX e XXI). Quanto à contestação da Igreja em relação a determinados textos ou filmes, ela justifica-se, na opinião de J. Luís Brandão, pela tendência actual para a confusão entre a realidade e a ficção. Será, porém, mais importante estimular as pessoas para a interpretação do ficcional como ficcional, interpelou o orador.

Imaginário cristão em crise

Quando a cultura não espelha o diálogo com a religião, o afastamento entre Fé e Sociedade é evidente. Esta apreciação de José Saramago, o autor do contestado Evangelho segundo Jesus Cristo, surgiu a propósito da situação cultural de hoje. Delfim Leão considerou que muitas obras literárias contêm referências ao imaginário cristão, não sendo percebidas enquanto tal pelos leitores. Antigamente, o primeiro lastro de cultura era cristão, pois eram as histórias bíblicas que se ouviam na infância. Hoje esse imaginário está em crise. Todavia, notou aquele professor, há algo de contraditório nesta situação, pois, apesar do limitado conhecimento histórico-religioso, “toda a gente se sente habilitada para criticar a Igreja”. Há, porém, um crescente interesse, mesmo por parte de não cristãos, pelos estudos bíblicos, conforme tem constatado J. Luís Brandão.

Delfim Leão confessou que, há uns anos, não compreendia a morosidade com que a Igreja responde a questões levantadas pela ciência e pela cultura. Hoje percebe que essa atitude se prende com o facto de a Igreja, observada por quem crê e por quem não crê, transmitir uma mensagem perene. Essa mensagem não se compadece com precipitações, nem contradições. Foi aliás, relembrada a etimologia da palavra Religião, que deriva do vocábulo latino “religare”, que significa estabelecer uma relação entre o mundo terreno e o espiritual.

Finalizando o ciclo de encontros sobre a GS, Pe. João Gonçalves, Pároco da Sé, agradeceu a presença de oradores e público, do grupo Aveiroarte e da Câmara Municipal de Aveiro pela cedência do espaço, a Galeria dos Morgados da Pedricosa. Deixou uma nota de especial apreço à comissão, composta por dois paroquianos (Armando Silvestre e António Gonçalves), que conseguiu pôr em prática uma “iniciativa arrojada do Conselho Paroquial”.

O cientista que rezava o terço

A história do encontro de um estudante universitário com um senhor que rezava o terço no comboio, contada por um elemento do público, ilustrou a atitude contemporânea face à religião. Interpelado pelo estudante quanto ao seu comportamento, pois o jovem afirmava que a ciência provara a inadequação da religião, o idoso escreveu num papel a sua morada, para receber os livros científicos que o jovem propunha enviar-lhe. Qual não foi o espanto do estudante quando percebeu que o seu interlocutor era um cientista, nada mais nada menos que Louis Pasteur (1822-1895).

Acesso à plena condição humana

«É próprio da pessoa humana não ter acesso a uma verdadeira e plena condição humana, senão pela cultura (…). A literatura e as artes, a seu modo, são também de grande importância para a vida da Igreja. Com efeito, procuram mostrar a natureza própria do homem, os seus problemas e as suas experiências, no esforço para se conhecer e aperfeiçoar a si mesmo e ao mundo; e tentam descobrir o seu lugar na história e no universo, bem como dar a conhecer as misérias e as alegrias, as necessidades e as energias dos homens e projectar um destino melhor para a humanidade.» (excertos dos nºs 53 e 62 da GS)